quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O AUTOR! O AUTOR!




Há muito não via meu amigo Sampa e quando apareceu, como é seu costume, foi logo ao assunto, como se estivesse continuando uma conversa interrompida minutos antes.

— Peguei o avião para o Rio. Ao meu lado, na poltrona da janela, uma deusa, aquela deusa.

Tinha um livro na mão e lia atentamente. Nem me olhou. O avião decolou e ela não tirou os olhos da página. Mexi-me, bati o cotovelo acidentalmente, perguntei se estava indo para o Rio, mas a deusa limitou-se a replicar hum-hum.
Que perfil, que dentes, na curva da nuca a penugem, esvoaçando ao sopro da ventilação do avião, fazia olas, firulas de pura paixão.

“E os olhos escuros, tão puros, perjuros, volvias, tremias, sorrias, para outro, não eu.” 

Fechou o livro, apoiou-o nos joelhos, jogou a cabeça para trás e gargalhou. Seu riso cristalino, rolando nota a nota, como chora Pixinguinha quando encarna Bach, fez bater com esperanças, meu coração. Pude então ver a capa do livro, era o teu, O Planeta Vinho, este novo que você escreveu.

Eu sei que foi traição, falta de decoro parlamentar, mas eu estava desesperado, apaixonado, à primeira vista, como um colegial. Sentia um peso no peito, mal respirava, não salivava, a visão fechada em tubo.

O coração pegando fogo, a língua enrolada, não falei, balbuciei: 

— Está gostando do meu livro?

A deusa me olhou surpresa e comparou-me com a tua caricatura na capa do livro. 

Apertei os olhos para ficar com tua cara de chinês, e com um gesto displicente, passei a mão no cabelo e derrubei o topete. Ela ainda duvidava, mas como você tem a cara do Gepeto com o olhar do Charles Bronson, ousei:

— É que hoje acordei invertido, estou mais com o olhar do Gepeto e a cara do Charles Bronson.

A observação inteligente, convenceu-a. Sem delongas, comecei a falar sobre o livro. Fiquei em alfa, memória perfeita, absoluta clareza, deu-me a terceira visão, eu não fingia, o verbo brotava, eu era você.

Repeti algumas crônicas adicionando detalhes. Personalizei as anedotas. Descrevi vinhos.

Cativa, a deusa pousou o livro fechado no regaço, reclinou a poltrona e passou a escutar-me. Como era doce o seu olhar, com que ternura sorria, antevia o mote, aprovava as tiradas.

Eu tinha a força. Entrei nos detalhes. O alcatrão nos Barolos, o rubi irisado dos Bourgognes, a alma negra dos Cabernets australianos, o ranço de focinho de bezerro mamão do Gewürztraminer, a magia insólita do Brunello.

Ela ouvia e sorria, para suas palavras, mas a voz que ouvia, que vinha de dentro e tocava o seu coração, não era a minha, mas a tua. Como Roxane, ela via Cristiano, mas só escutava Cyrano.

Chegamos ao Rio, convidei-a para jantar no meu Hotel, deixei de lado o velho OK da Rua Senador Dantas que havia reservado e mandei tocar para o Meridien.

Quando não encontraram a reserva, encenei um dos teus melhores papéis, “o Conhecido Escritor Indignado”. Foi tiro e queda. A recepção, com aquela diplomacia típica dos grandes hotéis quando vazios, além de encontrar meu pedido de reserva, me deu um upgrade, uma suíte, por conta da casa. 

Jantamos no restaurante envidraçado, flutuando no céu. 

Lá embaixo, aquele azul que vinha do mar, chão de estrelas salpicado, saudades que o sol poente da tardinha deixara num búzio de luzes verdes e alaranjadas dos neons, mixava Copacabana. 

Pedi um Les Amoureses, Comte Vogüé. Passeei por Chambolle Musigny en vole d’oiseau e fui para Gevrey Chambertin. Chegamos no Champagne, não tinha Salon, protestei, indignei-me, ofereceram La Grande Dame 1989, tomei-a como um sinal de bom presságio.

Fomos para o apartamento, fechei os olhos para não ver quantos zeros tinha o preço, e pedi um Les Charmes Joseph Drouhin 1995, levemente gelado, frapé, num balde de gelo e diante da garrafa declamei:

Les Charmes é tudo que se pode querer de um Premier Cru. Ele tem a força do nosso amor, a sensualidade dos teus olhos ciganos, o bouquet de teus lábios de mel, nem a força do Echezeau, nem a picardia do Romanée, mas a feminilidade da mulher que se dá e que me toma, se entrega e me possui, se invade e me devassa, me constrói e me destroça, antes mesmo de me tocar. Les Charmes reina em Chambolle Musigny, como você em meu coração.

A deusa levou a taça aos lábios, apenas roçou-os, bebeu apenas um golinho e afirmou:

— Chambertin!

— O quê?

— Chambertin, este Charmes não é de Musigny, é de Chambertin, é menos fragrante, mais limpo, mais compacto.

Tentei tergiversar, mas ela arrematou:

— Com certeza. Safra 1995, Joseph Drouhin, com toda a certeza. 

— E daí, Sampa, o que foi que aconteceu?

— Daí? Daí, você broxou. 

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br

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