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segunda-feira, 21 de maio de 2012

Crônicas de Luiz Groff - Varietal



Todas as regiões vinícolas tradicionais têm histórias para explicar como chegaram lá suas variedades de uvas.

Ora pelos gregos, ora pelos romanos, talvez os padres cistercienses, talvez um eremita que veio da Pérsia, quiçá uma mutação acidental que pulou a cerca.

As lendas fazem parte do marketing e geralmente são posteriores às leis, escritas ou da tradição, que fixaram a variedade na região.

O curioso é que a definição obrigatória das variedades num determinado lugar é bem recente, com exceção da Pinot Noir tornada obrigatória na Côte de Beaune no século XIV, com o expurgo da unloyal Gamay.
Somente no fim do século XVIII, a Riesling foi maciçamente plantada no Reno e no Mosel e a Cabernet Sauvignon reconhecida como a mais apropriada para o Medoc.

Então, ao contrário do que se crê, Bordeaux só se antecipou à Califórnia por cem anos.
A grande diferença entre o Velho e o Novo Mundo na definição das variedades, residiu em dois pontos: o tempo consumido no processo e o uso do nome no rótulo.

Na Europa as castas foram sendo selecionadas, adaptando-se ao clima, ao terroir e, lógico, ao mercado, ao longo dos séculos.

Deve-se entender a relutância dos produtores em aceitar novidades, lembrando que cada inovação leva à erradicação do plantel e à suspensão da atividade econômica por quatro anos. Isto quando dá certo, porque, quando dá errado, tem de começar de novo e esperar mais três anos, já que apenas o cavalo do enxerto é reaproveitado.

Creio que se não fosse a força corporativa dos religiosos na Bourgogne e os métodos colonialistas dos ingleses em Bordeaux, nenhuma regra teria sido imposta, prevalecendo o arbítrio de cada produtor.

Prova-o a Itália que com seu indomável ânimo anarquista, resistiu até 1980.

Outras mudanças ocorreram quando o Philloxera destruiu os plantéis e aproveitou-se para substituí-los por espécies mais promissoras. Sancerre e Pouilly Fumée, por exemplo, trocaram Chenin Blanc por Sauvignon Blanc.

Na Califórnia, diante da terra nua, o produtor analisa o mercado, estuda as cepas disponíveis nas criadeiras, observa os vizinhos, lê um boletim da Universidade de Davis e manda os empregados plantar.

O uso do nome da uva no rótulo foi criação americana, logo após a lei seca, quando se constatou que o vinho americano não poderia ter êxito enquanto não expurgassem os nomes falsificados: Jerez, Chablis, Burgundy, Claret e, fantástica cara de pau de George Delatour, Tipo Château d’Yquém.

Solidamente incrustados no prestígio da denominação de suas regiões, os franceses nãos se abalaram com a novidade e continuaram a ignorar o nome da cepa.

Hoje, sessenta anos depois, estão tendo de explicitar no rótulo que Bourgogne é feito de Chardonnay para manter suas vendas e enfrentar a imagem varietal implantada no cérebro do consumidor americano.

Recentemente um leitor da Wine Spectator ponderou que se o vinho de assemblage é feito com diferentes uvas de modo a compensar suas recíprocas deficiências, infere-se que o vinho é feito com uvas inferiores. 

Torquemada não teria deixado por menos na Santa Inquisição.
Ou, como uma pessoa que, garrafa na mão, duvidou:

— Então estes sujeitos usam várias uvas para fazer este vinho? Já imaginou se fosse 100% varietal?

O vinho era um Mouton Rothschild 1990.

sexta-feira, 16 de março de 2012

O Aroma do Vinho





Se você lembra com saudades o gosto daqueles bolinhos de graxa das viagens de trem de sua infância, sinto decepcioná-lo, mas é o aroma e não o gosto, o objeto de suas recordações.

O paladar só reconhece quatro padrões: amargo, doce, salgado e ácido. Com tão poucas informações, privados do aroma, não conseguiríamos distinguir purê de batata de sorvete de jaca.

É o perfume, o aroma, que diferencia os alimentos e, por excelência, os vinhos. O que chamamos de gosto não passa de retro-olfato, ar aspirado da boca que vai aos bulbos olfativos. 

As moléculas aromáticas, arrastadas pelo ar aspirado, chegam ao topo do nariz onde células olfativas mandam impulsos elétricos para serem interpretados no cérebro.

De lá seguem dois caminhos. Para o hipocampo, junto à memória, onde se registram as impressões profundas e fundamentais, o cheiro da espécie, o aroma da mãe. O outro vai aos tálamos, na zona lateral do cérebro, onde alimenta os reflexos: predador, fêmea, fogo, alimento.

O cheiro permite identificar o veneno, (Ágata Christie sempre identificava a morte por arsênico porque deixava cheiro de amêndoas) o alimento estragado, a doença do filhote e o predador.

No aroma de alarme, quanto mais claro melhor. Quem confundir cheiro de fumaça com fêmea, a menos que seja bombeiro, entra pelo cano.

E porque identificar o predador é mais crítico para a fêmea, a seleção natural cuidou de desenvolver mais o aroma das fêmeas, o que levou a mulher à cozinha e, subproduto, a lavar pratos.

O olfato é um sentido mais importante que o gosto, mas infelizmente, neste campo somos pouco dotados. O faro humano está apoiado em apenas 12 milhões de células, contra 4 bilhões do cão. Por isto, onde temos impressões, os cães têm certezas.

Nossa imagem de aromas é como uma televisão sem antena, que nos fornece informações fugidias de baixa definição.

 O aroma é carreado por uma proteína que possui uma abertura onde se encaixa apenas uma célula aromática. A junção das proteínas afins a uma forma, configuram o cheiro característico.

Por isto aromas inibem-se mutuamente. O aroma de tomate, por exemplo, impede sentir o aroma de rosas, porque a célula do tomate “cabe” na abertura das rosas e bloqueia o encaixe. Cheiros fortes, como cebola, alho, gasolina, entopem tudo e bloqueiam o sentido por algum tempo.

Não se conhece o número de padrões básicos que compõem o aroma. Imagina-se sejam muitos, dadas as infinitas nuanças que se formam, mas convém não esquecer que, com apenas três cores básicas, é possível compor uma interminável série de matizes coloridos.

Tenho para mim que os padrões são sete. É puro chute, mas se estiver certo, espero venha a ser conhecido como o Espectro Olfativo Heptagonal de Doktor Groff. Não ria, Van Hallen deu um chute parecido sobre o cinturão magnético que envolve a Terra, do qual nada entendia, e entrou para a história da física e do rock.

De qualquer modo, se o aroma viesse a ser descodificado, seu Beaujolais deixaria de ser descrito pelos críticos por aquela lista de frutas vermelhas qual tabela de sorveteria e passaria a ter um padrão numérico.

Muitos acham que a confecção de vinhos viraria farmácia de aviamentos, processado na hora, pelo computador, ao gosto do freguês, como já se faz com tinta de automóvel, quebrando seu encanto.

A minuciosa e inequívoca identificação das cores e a capacidade de reproduzi-las não tirou, ao contrário, realçou, a mística de Van Gogh, a beleza do arco-íris, a poesia do pôr-do-sol.

Não creio que a análise do aroma venha perturbar a magia dos nossos Mouton Rothschild, digo 1742-32/65.

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br 

quinta-feira, 8 de março de 2012

O Colecionador





Não existe uma definição clara dos limites que separam uma pessoa normal de um colecionador, aquele ponto onde cessa o prazer saudável da posse e começa neurose de colecionar.

É absolutamente normal sentir prazer em possuir alguma coisa e quanto mais raro ou especial for este claro objeto do desejo, maior será nosso prazer.
Também é indiscutível que ter dois é melhor que um, e três é melhor que dois.

Mas nas pessoas normais, o prazer se atenua à medida que a posse se repete, enquanto que no colecionador a compulsão se acentua à medida que a lista cresce.

As pessoas normais convivem com o que já têm, o colecionador com o que está faltando.

Quem disse, mais vale um pássaro na mão do que dois voando, comia, não colecionava.

Tenho um amigo que faz coleção de coleções. Coleciona tudo: selos, moedas, cartões de telefones usados, Seleções, Geographic Magazine, caixas de fósforos, cinzeiros roubados em navios, estampas do Sabonete Eucalol. Quando nossa turma viaja para o exterior, vai fazendo encomendas e consegue pôr um grupo de pessoas a procurar fichas telefônicas até em latas de lixo. Felizmente ainda não lhe ocorreu colecionar Modess usados.

A crônica já estava por aí quando toca o telefone:
“Este sujeito, o tal que faz coleção de Estampas do Sabonete Eucalol... Qual é o nome dele? Tenho uma coleção quase completa, só me falta o Rio Nilo. Será que ele não quer vender?”

A crônica nem havia sido publicada, surrealismo puro, e o Colecionador já estava assediando meu amigo.

Não ouso confessar que a crônica lida com metáforas, seres imaginários, junção das manias de várias pessoas, cada qual com uma única coleção, e até os devaneios de um sujeito que não tinha nenhuma coleção, mas sonhava, um dia, fazer todas.

Miseravelmente, traio meu amigo, sobrinho de um farmacêutico de Canoinhas que, violando as caixas de sabonetes do tio, encheu duas caixas de sapatos com estampas do Sabonete Eucalol e esqueceu-as sobre o guarda-roupa, há mais de trinta anos. Dou o seu endereço e, meia hora depois, o Colecionador saiu da casa do meu amigo com a caixa de estampas em baixo do braço.

Colecionador tem que ter inveja, ciúme, despeito, e, sobretudo, alegrar-se cada vez que um concorrente sofre uma perda. Colecionador tem orgasmos: o de sua própria ereção, e o da brochada do rival.

Pessoas colecionam coisas por terem necessidade de organizar o espaço à sua volta e adquirir uma sensação de poder.

É comum encontrar pessoas frias e eficientes em sua área profissional de atuação que se comportam como amadores passionais quando tratam de sua coleção.

Há quem colecione vinhos. Conheci um Comendatore, em Vicenza, que tinha mais de 6.000 garrafas de vinhos diferentes, expostas em vitrines numa sala climatizada.

Nada entendia de vinhos, lado a lado estavam Château Petrus e Liebfraumilch.

Dei-lhe um Sangue de Boi que ganhou um lugar de destaque, porque era o único brasileiro da coleção.

Ter estoque de vinhos não significa necessariamente fazer coleção.

Os grandes vinhos evoluem e se aperfeiçoam continuamente e até se valorizam com o tempo, logo, faz sentido ter uma quantidade guardada, sem o intuito de formar uma coleção.

Já estocar vinhos comuns, que não evoluem e podem ser comprados a qualquer momento, é tão sensato quanto guardar latas de goiabada, embora estas sejam mais fáceis de empilhar.

Tenho muitos vinhos e sinto prazer em possuí-los, mas meu prazer decorre da expectativa do desfrute e não da posse.

Ponho as garrafas sobre a mesa, vou abrindo, cheirando, olhando, mastigando, prestando atenção, tomando notas quando me dá vontade, comparando-as com a opinião de amigos.

Mas não coleciono vinhos, nem guardo anotações, coleciono lembranças.

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O AUTOR! O AUTOR!




Há muito não via meu amigo Sampa e quando apareceu, como é seu costume, foi logo ao assunto, como se estivesse continuando uma conversa interrompida minutos antes.

— Peguei o avião para o Rio. Ao meu lado, na poltrona da janela, uma deusa, aquela deusa.

Tinha um livro na mão e lia atentamente. Nem me olhou. O avião decolou e ela não tirou os olhos da página. Mexi-me, bati o cotovelo acidentalmente, perguntei se estava indo para o Rio, mas a deusa limitou-se a replicar hum-hum.
Que perfil, que dentes, na curva da nuca a penugem, esvoaçando ao sopro da ventilação do avião, fazia olas, firulas de pura paixão.

“E os olhos escuros, tão puros, perjuros, volvias, tremias, sorrias, para outro, não eu.” 

Fechou o livro, apoiou-o nos joelhos, jogou a cabeça para trás e gargalhou. Seu riso cristalino, rolando nota a nota, como chora Pixinguinha quando encarna Bach, fez bater com esperanças, meu coração. Pude então ver a capa do livro, era o teu, O Planeta Vinho, este novo que você escreveu.

Eu sei que foi traição, falta de decoro parlamentar, mas eu estava desesperado, apaixonado, à primeira vista, como um colegial. Sentia um peso no peito, mal respirava, não salivava, a visão fechada em tubo.

O coração pegando fogo, a língua enrolada, não falei, balbuciei: 

— Está gostando do meu livro?

A deusa me olhou surpresa e comparou-me com a tua caricatura na capa do livro. 

Apertei os olhos para ficar com tua cara de chinês, e com um gesto displicente, passei a mão no cabelo e derrubei o topete. Ela ainda duvidava, mas como você tem a cara do Gepeto com o olhar do Charles Bronson, ousei:

— É que hoje acordei invertido, estou mais com o olhar do Gepeto e a cara do Charles Bronson.

A observação inteligente, convenceu-a. Sem delongas, comecei a falar sobre o livro. Fiquei em alfa, memória perfeita, absoluta clareza, deu-me a terceira visão, eu não fingia, o verbo brotava, eu era você.

Repeti algumas crônicas adicionando detalhes. Personalizei as anedotas. Descrevi vinhos.

Cativa, a deusa pousou o livro fechado no regaço, reclinou a poltrona e passou a escutar-me. Como era doce o seu olhar, com que ternura sorria, antevia o mote, aprovava as tiradas.

Eu tinha a força. Entrei nos detalhes. O alcatrão nos Barolos, o rubi irisado dos Bourgognes, a alma negra dos Cabernets australianos, o ranço de focinho de bezerro mamão do Gewürztraminer, a magia insólita do Brunello.

Ela ouvia e sorria, para suas palavras, mas a voz que ouvia, que vinha de dentro e tocava o seu coração, não era a minha, mas a tua. Como Roxane, ela via Cristiano, mas só escutava Cyrano.

Chegamos ao Rio, convidei-a para jantar no meu Hotel, deixei de lado o velho OK da Rua Senador Dantas que havia reservado e mandei tocar para o Meridien.

Quando não encontraram a reserva, encenei um dos teus melhores papéis, “o Conhecido Escritor Indignado”. Foi tiro e queda. A recepção, com aquela diplomacia típica dos grandes hotéis quando vazios, além de encontrar meu pedido de reserva, me deu um upgrade, uma suíte, por conta da casa. 

Jantamos no restaurante envidraçado, flutuando no céu. 

Lá embaixo, aquele azul que vinha do mar, chão de estrelas salpicado, saudades que o sol poente da tardinha deixara num búzio de luzes verdes e alaranjadas dos neons, mixava Copacabana. 

Pedi um Les Amoureses, Comte Vogüé. Passeei por Chambolle Musigny en vole d’oiseau e fui para Gevrey Chambertin. Chegamos no Champagne, não tinha Salon, protestei, indignei-me, ofereceram La Grande Dame 1989, tomei-a como um sinal de bom presságio.

Fomos para o apartamento, fechei os olhos para não ver quantos zeros tinha o preço, e pedi um Les Charmes Joseph Drouhin 1995, levemente gelado, frapé, num balde de gelo e diante da garrafa declamei:

Les Charmes é tudo que se pode querer de um Premier Cru. Ele tem a força do nosso amor, a sensualidade dos teus olhos ciganos, o bouquet de teus lábios de mel, nem a força do Echezeau, nem a picardia do Romanée, mas a feminilidade da mulher que se dá e que me toma, se entrega e me possui, se invade e me devassa, me constrói e me destroça, antes mesmo de me tocar. Les Charmes reina em Chambolle Musigny, como você em meu coração.

A deusa levou a taça aos lábios, apenas roçou-os, bebeu apenas um golinho e afirmou:

— Chambertin!

— O quê?

— Chambertin, este Charmes não é de Musigny, é de Chambertin, é menos fragrante, mais limpo, mais compacto.

Tentei tergiversar, mas ela arrematou:

— Com certeza. Safra 1995, Joseph Drouhin, com toda a certeza. 

— E daí, Sampa, o que foi que aconteceu?

— Daí? Daí, você broxou. 

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A Invenção da Ânfora


O primeiro recipiente prático para guardar vinhos e azeites foi a jarra. Feita de barro, material abundante, fácil de moldar e tenaz, que permitia fazer vasos leves de paredes finas.

A jarra só tinha um defeito. Tinha de ser carregada nos braços ou na cabeça por uma única pessoa, o que limitava o seu peso.

Foram os Canaanitas, em 1500 a.C., que tiveram a idéia de colocar uma alça na jarra, para permitir o transporte de peças mais pesadas.

Não pensem que foi fácil.

Inicialmente os Canaanitas colocaram só uma alça, mas a jarra ficava muito instável e o líquido sempre entornava. Nas ladeiras, era um caos.

Surgiu então a idéia de colocar duas alças o que permitiria ser carregada por dois homens. Mas as primeiras ânforas tinham as duas alças do mesmo lado, forçando os carregadores a andar em coluna por um.

Como o carregador de trás ficava encoxando o da frente, ocorriam grandes discussões, ambos querendo — eram gregos — o lugar da frente.

Este problema foi resolvido estabelecendo um rodízio, quem ia na frente na ida, vinha atrás na volta, metodologia logo batizada de troca-troca.

Mas os problemas continuaram, o carregador de trás vivia pisando em cocô de cachorro e o patrocinador reclamava que a camiseta nunca aparecia nos quadros.

Os Canaanitas resolveram, pois colocar as argolas em ângulo reto, e quem calculou seu exato posicionamento foi o jovem Pitágoras que faria fama e fortuna com o software.

Infelizmente, os carregadores só andavam em círculo.

Cheio de tanto amadorismo, o rei mandou chamar um consultor. Estrangeiro, pois consultor, ninguém é profeta em sua terra, tem de ser de fora, e este sentenciou que ou se deixava como estava e cobrava-se por quilômetro ou se deslocavam as alças para 180º.

A colocação das argolas em posições diametralmente opostas foi adotada e deu-se àquela jarra hightec o nome de ânfora que em grego, inigualável poder de síntese, significa “recipiente para ser carregado por duas pessoas, uma de cada lado”.

Mas, nem assim, funcionou. As ânforas continuavam a perambular em círculos.
Chamado o consultor, sem pagar porque ainda estava na garantia, este esclareceu que, apesar de, por atraso da gráfica, a ânfora ter vindo sem o manual de instruções, era óbvio que os carregadores, além de marchar lado a lado, tinham de ficar virados para o mesmo lado.

E assim, sempre carregada por dois, as ânforas indo e vindo, levando e trazendo, subindo e descendo, estabeleceram aquela malha sutil de relacionamento que chamamos de comércio, sem a qual a humanidade não teria chegado ao capitalismo, ao marxismo, à globalização, ao neoliberalismo, tigres asiáticos, privatização, crise na bolsa, Real e à embalagem one way.

Para não perder a viagem, o consultor sugeriu ao rei que, usando o espaço entre as alças, mediante uma tabela de sinais gráficos, cada um representando um som diferente, seria possível colocar um rótulo identificando o conteúdo dos vasos.

O rei vetou, explicando que, em vez de ter o trabalho de ensinar a todo mundo o som de vinte e poucos sinais gráficos só para que soubessem se a ânfora continha óleo ou vinho, era mais fácil os carregadores anunciarem o conteúdo em voz alta.

Sugeriu ademais que o consultor usasse sua criatividade para bolar um jeito de colocar rodinhas na ânfora sem que o vinho vazasse pelos buraquinhos.
Por isto os Canaanitas inventaram a ânfora, mas a escrita ficou para o povo seguinte, os Fenícios.

Já o grito dos carregadores que logo incluíram o preço e as condições de pagamento, a propaganda, passou a fazer parte integral de nossas vidas, mas só se profissionalizou depois que os judeus, outro povo do Mediterrâneo, deram-lhe o nome de marketing.

E passou a dar uma grana firme.

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Malbec: A paixão que nos une




Quem poderia imaginar que a malbec, aquela uva expurgada de Bordeaux por ser suscetível a fungos, iria se adaptar à altitude e ao clima seco dos Andes e virar uma das uvas mais importantes do mundo. Versátil, permite fazer vinhos leves, perfumados e baratos para beber cedo. Ou robustos, tânicos para guardar até adquirirem aromas complexos e bouquets inebriantes. Nem os enólogos da Catena que subiam as encostas testando os clones mais adaptáveis às altitudes imaginavam que o Malbec pudesse vir a ser um vinho de guarda, com bouquets intrigantes de frutas vermelhas e silvestres, especiarias, etc. Não por acaso o Malbec tornou-se o vinho nacional da Argentina e o preferido do Brasil, umas das pouquíssimas paixões que nos une.

Pão quente

O clima de Mendoza permite a elaboração de vinhos bons e baratos. Algumas pessoas podem fechar os olhos à evidência de que a Argentina também está produzindo grandes vinhos comparáveis aos europeus, mas ninguém contestar que na faixa de vinhos baratos, excetuando o Chile, ninguém compete com a Argentina.

A enorme versatilidade da cepa malbec resulta em vinhos gostosos e baratos, aqueles cujos preços nos permitem fazer companhia ao pão nosso de cada dia. O mais famoso deles, evidentemente é o Alamos aquele dos 30 pontos por 90 reais... (Epa! Um revisor, meu vinho por um revisor!) digo, Alamos Malbec 90 pontos por 30 reais. Mas há outros muito baratos e agradáveis. Canópia, que custa 18 reais e Uxmal 20 reais, ambos da Catena, são vinhos muito redondos que podemos incluir em nossas mesas. Não vamos deixar de fora o Altos Lãs Homrigas Malbec que custa 42 reais. Um vinho excelente, fruto da qualificação profissional de quatro enólogos italianos que há dez anos decidiram testar sua experiência européia no clima excepcional de Mendoza e desde o início tem obtido generosas avaliações da crítica. Fechando a fila dos bons e baratos, por 55 reais vem o delicioso Animal Malbec, com aromas florais, marca registrada do enólogo Ernesto Catena.

Terroir

Existe uma crença que o clima de Mendoza é invariável ao longo da Cordilheira, só variando apenas com a altitude. Trabalhos recentes de enólogos de Mendoza estão demonstrando que isso não é verdade.

Como exemplo tem o Nicolas Catena que é um blend de Cabernet com Malbec oriundos de dois vinhedos Nicasia e Adrianna. Os dois vinhedos estão 100Km distante um do outro, mais ou menos na mesma altitude, têm climas ligeiramente diferenciados. Nicasia, locado em Altamira, mais ao sul, é mais frio. Adrianna, situado em Gualtallary é mais quente. Na sintonia fina desses vinhedos constata-se que o Nicasia é mais fino e elegante e o Adrianna mais potente e exuberante. Vinhos com 95 pontos no Parker e 96 na Wine Spectator, com um preço surpreendentemente baixo para a qualidade, confrontados em degustação permitem apreciar suas sutilezas. Podem ser tomados já, ou guardados por mais 10 anos. São ótimos, mas diferentes.

Viñas Viejas

Uma crítica a Mendoza é que as cepas são muito jovens para produzir grandes vinhos. Afirmação discutível porque o fator mais importante da idade da parreira é o aprofundamento das raízes, o que a leva a ser menos sensível às variações climáticas, como em Mendoza não chove, e os vinhedos são regularmente irrigados, a idade das cepas é menos importante.

Apesar disto, outro efeito do envelhecimento das parreiras que é a geração de sumos mais concentrados e complexos, justifica fazer vinhos de Viñas Viejas. Dois exemplos: Mapema e El Inimigo. Em Mapema, Pepe Galante, enólogo da Catena, selecionou diversos vinhedos antigos e produziu o Malbec 1ª Zona, 92 pontos Wine Spectator, um dos mais elegantes da Argentina.

No El Inimigo, Adrianna Catena, historiadora descobriu vinhedos plantados no século XIX e com o enólogo Alejandro Vigil produziu um blend de Malbec com Petit Verdot, um vinho robusto fora de série.

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Crônicas de Luiz Groff - O Homem que conhecia Condrieu



Hoje temos o prazer de postar a primeira crônica de Luiz Groff aqui no Gastronomia Descomplicada. 

Luiz Groff é premiado pela Associação Brasileira de Enologia, foi degustador profissional do Instituto Vinho do Porto, tem vários livros publicados e viagens enológicas por todo o mundo.

O Homem que conhecia Condrieu

Estava Sampa numa pior quando leu nos Classificados: “Procura-se quem conheça Condrieu. Paga-se bem”.

Sampa não fazia a menor idéia do que fosse Condrieu, nem ele, nem a Britânica. Na Larousse, apenas uma linha: “Petite village. 3.040 hab.”.

Mesmo com tão pouco, o desespero gera a audácia, telefonou e marcou uma entrevista.
Foi recebido por um senhor muito velho que pelas roupas e maneiras evidenciava ser uma pessoa importante, um lorde.

O cavalheiro explicou haver recebido de seu pai, que havia recebido de seu avô, uma garrafa de Condrieu para ser bebida à meia-noite do dia 31 do fim do Século. Por engano a cozinheira o usara para temperar o risoto e ele estava perdido, pois apenas lembrava, vagamente, que se chamava Condrieu.

O Sampa, admito, pode ser um baita ignorante e um oportunista, mas é rápido como um raio, tendo percebido que Condrieu era um vinho francês, improvisou: Trata-se dum vinho raro, mas muito peculiar, bem focado, com um caráter varietal muito nítido, grande personalidade, aromas de frutas, mel e “fruits de la passion”.

Propôs-se a dar um curso básico de Condrieu, começando pelos fundamentos: O vinho no Egito dos Faraós. Em trinta lições, pagamento adiantado, evidentemente.

Comprou alguns livros, onde encontrou muito sobre vinhos, quase nada sobre Condrieu e começou a dar aulas.

Um dia o velho, constrangido, perguntou-lhe se não poderia fazer uma palestra no Rotary. Sampa aquiesceu constrangido, porque, como se sabe, o Rotary não paga e “eu preciso pensar no Condrieu das crianças”.

A fama alastrou-se. Logo era apontado nas ruas: “Aquele, o cabelo branco, sabe quem é? É o Condriólogo. O Condriólogo de Curitiba”. “Você sabia que o Chapoutier não engarrafa o Condrieu sem que o Condriólogo, nosso Condriólogo, aprove a assemblage? Viaja todo ano para a França com despesas pagas”.

Começou a escrever uma crônica semanal no jornal: “A verdade no Condrieu”.

Fundou uma confraria: A “Condri-Nós”.

Um dia chega um convite para participar de um júri internacional de degustação de vinhos. Entrou em pânico. Pensou em não ir, mas a notícia vazou e no dia seguinte um jornal de Curitiba já estampava:

“Nosso Condriólogo pode presidir júri em Bordeaux”.

No aeroporto uma multidão compareceu ao embarque. Abraços, beijos, lembra de mim? Uma faixa: “Vai Condriólogo e mostra pra francesada!”.

Em Bordeaux foi recebido pelo organizador que logo escusou-se por não ter sido possível encontrar uma única garrafa de Condrieu, razão pela qual faria parte do painel de Bourgogne.

Aliviado, achou de bom alvitre expor alguma contrariedade: “Claro que conheço Bourgogne, mas, sabe como é, não é a minha especialidade. Ademais andam abusando da madeira por causa do Parker e esta ostentação escarrada de baunilha é uma afronta ao sutil perfume de rosas da Viognier, mas vou esforçar-me para não destoar”.

Pegou a ficha de avaliação e foi imitando os outros: Cheirando, bebendo, sacudindo taças, fechando os olhos, usando mais a sua narina especializada, a esquerda, e dando suspiros. No começo deu 85 para todos. Mas quando um degustador, sentado a seu lado, abriu um laptop, Sampa fez o mesmo com o seu. Botou no programa de gerador de números randômicos que usava para jogar na Sena e passou a usar as notas para os vinhos.

Ao fim da jornada recebeu o prêmio de “Jurado Menor Desvio Padrão”, aquele que tivera o menor erro médio quadrático e mais se aproximara das médias finais.

Na volta a Curitiba teve direito a desfile no carro dos bombeiros, batedores e serpentinas.
Logo publicou um primeiro livro: A Alma Condrieu. Depois outro: O Mundo Condrieu. Está preparando um terceiro: Le Tout Condrieu. Escrever para todas as revistas especializadas do Brasil: Cozinha, Avião, Futebol, Flores e Jardins, Filatelia.

E pelo mundo foi girando, “as visões se clareando”, nos caminhos do vinho, França, Itália, Portugal, Chile, Napa, Argentina, sem nunca (No jantar da entronização na Confrerie du Condrieu du Rhône Septentrional serviu-se um Hermitage tinto, porque “sanglier et blanc, helas, ça ne marche pas”) ter bebido uma única miserável gota de Condrieu.

E assim, vai vivendo nosso Sampa, sempre escrevendo sobre Condrieu, às vezes alegre, às vezes triste, às vezes dispersivo, às vezes indignado, conforme se lhe vá o espírito.

Quando está sem assunto, plagia “O Homem que Sabia Javanês” do Lima Barreto.

Coluna gentilmente cedida por Luiz Groff - Acesse www.invinoveritas.com.br
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